6 de jan. de 2010

HISTÓRIA: Cap. 7 - A Lei das Consignações (Lei 1046/50)


Como já visto, o art. 188 do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Decreto-lei nº 713/39) dispôs que ficaria a cargo de lei a regulação dos descontos em folha de pagamento dos servidores, limitando às entidades oficiais a faculdade de transacionar com os mesmos. Essa pretendida regra ainda aguardou pouco mais de dez anos para vir à luz, somente ocorrendo em 2 de janeiro de 1950, com a promulgação da Lei nº 1.046, que pretendeu dar nova roupagem às regras para consignação em folha de servidores públicos, embora mantendo as cautelas e ressalvas criadas pelo Decreto-lei nº 312.


A grande inovação imaginada pelo Congresso Nacional não foi acolhida pelo Presidente da República: a devolução da qualidade de consignatárias às cooperativas de consumo, às associações de classe e aos estabelecimentos de crédito. Pela relevância do assunto, vale transcrever a mensagem presidencial de veto:



“Senhores Membros do Congresso Nacional:


Tenho a honra de levar ao conhecimento de Vossas Excelências que, usando da atribuição que me confere o art. 87, item II, da Constituição, resolvi vetar parcialmente o projeto de lei nº 633-C/47, que dispõe sobre consignações em folha de pagamento e regula as suas condições.


O projeto ora submetido à minha sanção tem, inegavelmente um nobre objetivo: pretende ampliar as transações que constituem uma espécie de válvula de desafogo à vida privada dos servidores públicos, permitindo-lhes encontrar com mais facilidade, nos momentos difíceis, sem constrangimentos ou vexames, o recurso que, por outra forma talvez, lhes seria impossível conseguir. Visa, ainda, exercer o mandato de assistência social mais completa, dever precípuo do Estado, facilitando aos seus servidores a educação dos filhos, a obtenção dos artigos de consumo indispensáveis ao seu uso e dos seus dependentes.


Não é possível, todavia, escurecer que, a despeito das salutares cautelas previstas no texto legal em apreciação, dispositivos há dentro do mesmo que, se aprovados, constituiriam um perigo para a própria segurança econômica dos servidores do Estado e uma perene ameaça à paz de suas famílias.


O presente projeto, uma vez transformado em lei, representaria, praticamente, o restabelecimento da situação anterior ao Decreto-lei nº 312 de 1938, quando vigoravam os dispositivos do Decreto nº 21.576, de 1932, com as modificações que lhes foram introduzidas pelo Decreto 22.296, de 1933.


A amplitude das transações permitidas aos servidores públicos, através consignações em folha de pagamento, por aqueles dois diplomas legais, a despeito das cautelas com que se tentou cercá-las, provaram à sociedade a necessidade de uma providência do Estado em defesa da economia dos seus servidores cuia proteção lhe cabe assumir.


Essa a situação que se procurou sanar com o Decreto-lei nº 312, de 1938, ora em vigor. E é no intuito, de evitar voltem a imperar os abusos verificados então que resolvi apor o meu veto aos itens IV, V e VI do art. 5º do projeto ora submetido à minha sanção, ou seja:


‘IV - Cooperativas de consumo com fins beneficentes, legalmente constituídas’.


A experiência de longos anos de vigência do antigo regime de consignações em folha de pagamento demonstrou sobejamente que a facilidade de consignar em favor de cooperativas de consumo é uma porta aberta para a usura e a extorsão, dado que os servidores, especialmente os de nível mais modesto não hesitarão talvez em adquirir a crédito objetos de uso e logo adiante venderão ou empenharão por preços irrisórios, sujeitando-se ainda a juros extorsivos.


‘V - Associações de classe com caráter beneficente’.


Estender-se às associações de classe a faculdade de transigir com os servidores públicos mediante consignação em folha de pagamento, é dar azo a toda espécie de abuso e explorações dificilmente controláveis. Uma vez sancionado o projeto em exame, não tardarão certamente, a surgir numerosas dessas entidades que, mediante a instalação de modesto ambulatório, adquirirão o caráter de "beneficentes". Não será mesmo de estranhar que até clubes esportivos, recorrendo a hábeis adaptações, consigam ser incluídos entre as associações visadas no projeto, multiplicando ainda mais o número de entidades legalmente investidas da faculdade de transigir mediante consignação em folha de pagamento. E não será de estranhar que dentro em breve, o número de associações de classe com caráter beneficente venha a reproduzir a situação anterior ao Decreto-lei nº 312, de 1938, quando proliferavam as caixas que, pretextando intuitos de beneficência ou de sócio financeiro, à sombra da lei das consignações, criaram o triste panorama da agiotagem agindo impunemente e prosperando à custa da imprevidência dos servidores públicos e com sacrifício das suas famílias.


Objetar-se-á, não há dúvida, que as medidas acauteladoras previstas no projeto, restringindo a um máximo de 30% dos salários, o limite das consignações para a maioria das transações, prevendo a aplicação dos juros legais e instituindo salutar fiscalização, constituirão uma garantia contra possíveis explorações.


É preciso não esquecer, porém, que a elevação do custo de vida, as injunções do momento difícil que atravessa o país, já suscitara tantas e tão variadas solicitações por parte dos servidores públicos que, tudo leva a crer, muito difícil se tornará a existência das famílias cujos chefes se vejam, reduzidos a 70% dos seus salários.


Na defesa, pois, da instituição da família e da própria dignidade dos seus per servidores, cabe ao Estado evitar, por todos os meios, o ressurgimento dos abusos apontados.


‘VI - Estabelecimentos de crédito legalmente constituídos, com capital não inferior a Cr$ 10.000.000.00 (dez milhões de cruzeiros) e tempo de funcionamento, não menor de cinco anos, sob a condição ainda de não fazerem do empréstimo consignado em folha a sua única ou principal atividade e de empregarem a metade, pelo menos, do seu capital em crédito comercial ou industrial’.


Os estabelecimentos de crédito a que alude esse item são, praticamente, todos os bancos. O dispositivo ampliará de tal forma o campo de transações dos servidores por meio de consignação em folha de pagamento, multiplicando o número das entidades consignatárias, que a fiscalização prevista no próprio projeto tornar-se-ia impraticável.


Nestas condições, a medida legal proposta fugiria completamente ao seu salutar objetivo, que é o de amparo e auxílio aos servidores do Estado, transformando-se, lamentavelmente, em malefício para aqueles mesmo a quem pretendia beneficiar.


Os servidores públicos, com as facilidades ampliadas através dos itens III, VII e VIII do art. 5º do projeto, já verão bem facilitadas a solução para emergências difíceis, e inevitáveis, uma vez que tais dispositivos representam inovações ao regime atuai, cuja rigidez se procura atenuar.


Os itens citados parecem-me, porém, contrários aos altos interesses nacionais, por isso que, os considero prejudiciais à segurança econômica dos servidores públicos, cuja salvaguarda constitui um dos deveres precípuos do governo uma vez que dela depende, em grande parte, a eficiência do elemento pessoal, parte integrante e mesmo preponderante da máquina administrativa do país.


Por essa razão, nego minha sanção aos itens IV, V e VI do art. 5º do Projeto 633-C de 1947, por contrários aos altos interesses nacionais.


Estou certo de que ao elevado patriotismo e ao espírito esclarecido dos Srs. Membros do Congresso Nacional, não escapará a justeza dos argumentos expostos, que justificam o veto parcial que aponho ao Projeto de Lei nº 633-C de 1947.


Rio de Janeiro, em 2 de janeiro de 1950

G. Dutra”


Resolvi sublinhar os comentários sobre o inciso V apenas para ressaltar a capacidade premonitória do Presidente Dutra, antevendo a situação que o SIAPE vivenciaria 50 anos depois...


Com os vetos presidenciais, a Lei nº 1.046 quase nada inovou. Na prática, era como se ainda vigorassem as disposições do decreto getulista de 1938. Uma das poucas novidades foi a reaglutinação das normas referentes ao pessoal civil e ao militar. Afora isso, espraiava seu escopo aos pensionistas, aos entes integrantes da administração indireta (autarquias, sociedades de economia mista e empresas concessionários de sérvios públicos) e aos poderes judiciário e legislativo, bem como ao Ministério Público.


No que tange especificamente aos empréstimos, merecem destaque as seguintes regras instituídas pela legislação:

a) Estipulação de prazo máximo de 48 meses (ou 30 anos, no caso de aquisição de imóvel para moradia própria);

b) Limitação dos juros em 10% ao ano, no caso de aquisição de imóvel, ou 12% ao ano, nos demais casos;

c) Proibição de estipulação de outras garantias (salvo seguro de vida ou a hipoteca do imóvel), no caso de financiamento imobiliário;

d) Proibição ou da cobrança de taxas, comissões ou contribuições;

e) Faculdade de liquidação antecipada, total ou parcial, mediante redução proporcional dos juros;

f) Extinção da dívida na hipótese de falecimento do funcionário.


E mais uma vez se demonstra que nada se cria, tudo se copia!


Com relação aos militares, a aplicabilidade da Lei nº 1.046 foi efêmera, tendo durado somente um ano, até a entrada em vigor do Código de Vencimentos e Vantagens dos Militares (Lei nº 1.316, de 20 de janeiro de 1951). Fortalecendo o associativismo, o código de remuneração castrense admitiu como consignatários, além das entidades oficiais, diversas associações de classe, a todas sendo permitida a concessão de empréstimos (Clube Militar, Clube Naval, Clube de Aeronáutica, Associação dos Suboficiais da Armada, Caixa Beneficente dos Sargentos da Marinha, Clube dos Suboficiais e Sargentos da Aeronáutica, Casa do Sargento do Brasil e suas congêneres, Grêmio Beneficente de Oficiais do Exército, Círculo dos Oficiais Reformados do Exército e da Armada, Associação Beneficente dos Músicos Militares e Carteira Hipotecária e Imobiliária do Clube Militar).


Já a “resistência civil” à admissão de entidades não oficiais como consignatárias perdurou até o final de 1954, quando ingressaram no sistema a Associação dos Servidores Civis do Brasil e o Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado (Lei nº 2.339, de 20 de novembro de 1954).


Mais uma década se passou até a extensão desse favor à União dos Ferroviários do Brasil (Lei nº 4.572, de 11 de dezembro de 1964). Enquanto às entidades assistencialistas dos servidores civis era dificultado o acesso ao sistema de consignação, a folha de pagamento dos militares era cada vez mais condescendente com os grêmios militares: em 1964, 16 entidades estavam cadastradas. Até então, o credenciamento de consignatários era atribuição do Ministério da Fazenda e divulgado através de decreto presidencial.


Em 1970, ao definir as entidades beneficiárias de descontos para efeito do Código de Vencimentos dos Militares de 1969 (Decreto-Lei nº 728, de 4 de agosto de 1969), o governo fixou a regra de que somente poderiam ser admitidas novas entidades consignatárias se consideradas de utilidade pública e com quadro social superior a 2.000 associados militares, além de atribuir poderes a cada ministério militar para efetuar o credenciamento de consignatários em seu âmbito (Decreto nº 67.104, de 24 de agosto de 1970). Esse princípio foi consagrado nas normas atuais, que estabelecem a competência de cada uma das forças armadas para regulamentar os descontos incidentes sobre a folha de pagamento de seu pessoal (Medida Provisória nº 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, art. 16).


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