15 de jan. de 2010

Crédito consignado – Leia a bula antes de usar


Não sou procurador de nenhum banco. Não sou correspondente bancário. Não sou remunerado, a qualquer título, por nenhuma instituição financeira. Por isso, minhas opiniões não representam o ponto de vista de um ou outro banco, de associação de banqueiros ou de correspondentes bancários. Isso me proporciona a tranquilidade de falar sem ter o rabo preso. Se alguém não concorda, paciência. Não pretendi mesmo ser uma unanimidade... De maneira geral, também não sou contra advogados, fique isso bem claro. Afinal, vez por outra eu preciso deles.

Feita essa necessária introdução, vamos ao assunto de hoje.

Li em um blog que “o principal motivo do endividamento da população deflui dos empréstimos consignados, visto que os correspondentes bancários calculam de forma errada e não existe critério na concessão aos consumidores, ora servidores públicos e aposentados”.

Não vou negar: tomei um baita susto. Tem economista de montão por aí estudando o assunto, alguns até defendendo teses de doutorado sobre o endividamento das famílias, de repente surge um advogado e pimba! Em 3 linhas mata o assunto! Simplesmente fantástico!


Ao dissecar essa estranha e falaciosa construção frasal, o leitor desavisado pode chegar às seguintes conclusões:

a) os correspondentes bancários são contumazes em fazer o cálculo dos empréstimos de forma errada;

b) os bancos, por mera tolerância, ingenuidade ou conivência, aceitam esses erros;

c) os caríssimos sistemas informatizados dos bancos não conseguem detectar os erros e processam os empréstimos normalmente;

d) a política de crédito dos bancos é inconsistente ou inexistente;

e) a linha de crédito com a menor taxa de juros é responsável pelo endividamento da população.

Lamentavelmente, o autor do blog não apontou – pelo menos de forma direta – solução para reduzir o endividamento da população. Fiquei pensando nas alternativas: quem sabe um crédito pessoal a 15% ao mês em uma financeira? Cheque especial? Talvez seja o caso de procurar um agiota... Diante dessas opções, o consignado ainda parece ser o melhor dos mundos.

Aí eu percebi que, embora o texto não mencione, o título da matéria oferece a dica da solução bolada pelo autor do blog: “O empréstimo consignado também é passível de revisional”. Como não sou advogado, recorri à internet é li: “Ação Revisional de contrato é uma demanda judicial através da qual se busca a revisão de cláusulas de um contrato de financiamento objetivando a redução ou eliminação de seu saldo devedor, bem como a modificação de valores de parcelas, prazos e até mesmo o recebimento de valores já pagos”. Demanda judicial? Excelente sugestão! E, por obra e graça do destino, o autor do blog é... advogado! Além da “dica”, o blog indica o telefone e o endereço do escritório do nobre causídico.

A espada da justiça é brandida com ira pelo advogado em questão, ao afirmar que o crédito consignado está “subjugando os aposentados a sanha predatória das instituições financeiras sem qualquer critério ou responsabilidade, além dos funcionários públicos municipais, estaduais e federais, sem efetivamente ser um produto benéfico ao seu público alvo” (sic). Sanha predatória? Uau!! Morri de medo!!

A fúria incontida do advogado também lança sobre os bancos outras graves acusações: “Cabe destacar, que acontece da taxa ser alterada, do valor solicitado ser mudado para maior – para melhorar a comissão do agente, e quando a instituição financeira não é séria, inclusive o próprio empréstimo é subtraído pelo agente...”. Instituições financeiras “não sérias” alterando taxas pré-fixadas ao seu bel prazer, aumentando o valor dos empréstimos sem o conhecimento do cliente e subtraindo dos tomadores o valor dos empréstimos? Isso é de fazer a máfia russa morrer de inveja.

A coisa não para por aí (senti saudade do acento diferencial):

O principal erro que leva o consumidor ao endividamento perpétuo ocorre no ato da contratação do empréstimo consignado, pois o agente financeiro não efetua o cálculo da margem (atualmente em 30%) sobre o salário base, e sim sobre o salário bruto. Esse simples detalhe faz com que ocorra um desequilíbrio financeiro no transcorrer do contrato (em média 60 meses)”.

Parece não ter ocorrido ao iracundo defensor que o cálculo da margem consignável (o chamado “simples detalhe”) e a averbação em folha de pagamento não são feitos pelos bancos, mas pelo órgão empregador. Na maioria dos casos, um sistema informatizado fornece a margem consignável, e banco nenhum consegue averbar ou tem interesse em averbar parcelas acima da margem do cliente, pois isso representa um risco desnecessário. E se tem uma coisa que banco odeia é prejuízo.

E disse mais o advogado:

Os funcionários públicos somam ao seu salário base inúmeras gratificações e adicionais, duplicando assim seu salário bruto. Porém, essas gratificações e adicionais sofrem oscilações, momento em que o funcionário público cai em desespero, vendo-se obrigado a recorrer ao banco para renegociar. Em situação confortável, o banco nega-se a renegociar, afinal tem a garantia de receber. Quando ocorre esse tipo de situação ao devedor desesperado aumento do limite do cheque especial, do cartão de crédito, e oferece ao desesperado devedor um novo empréstimo com base em sua margem salarial, porém ao invés do desconto da prestação vir em seu hollerith, vem descontado diretamente em sua conta corrente simultaneamente com o crédito de seu salário (sic). Ou seja: para sobreviver o consumidor será obrigado a recorrer aos limites de crédito oferecidos, e ficará sem salário”.

A redação é confusa, mas, em síntese, quer dizer o seguinte: o crédito consignado nada mais é do que uma grande armadilha urdida pela “sanha predatória” de uma gigantesca quadrilha articulada por bancos, correspondentes e empregadores, com o objetivo de arrancar dos incautos servidores públicos e dos aposentados a totalidade dos seus salários, reduzindo-os à escravidão.

No meu primeiro emprego, meu chefe disse que “o papel aceita tudo”. Só que naquele tempo não existia internet, e as bobagens que escrevíamos ficavam restritas a um pequeno círculo de conhecidos. Agora as coisas são diferentes. Temos blogs, twitter e sites de relacionamento. A tecnologia da informação conduziu ao extremo a velocidade com que nossas tolices atravessam as fronteiras. Gente de toda parte do mundo pode ler, quase que instantaneamente, o que ousamos compartilhar. Esse é o grande barato da democracia: todos têm o privilégio de poder escrever toda a sorte de asneiras (inclusive eu, fique isso bem claro). Mas tem gente que exagera. Atribuir aos bancos a razão do endividamento das pessoas já me parece absurdo, mas colocar a culpa no crédito consignado tangencia a insanidade ou a irresponsabilidade. É como culpar os fabricantes de armas por todos os assassinatos e livrar a cara de quem puxou o gatilho ou enfiou a faca.

O crédito é um medicamento: o uso de altas doses e por períodos prolongados pode causar dependência e outros graves efeitos colaterais. Por isso, deve-se ler a bula antes de usar.

Aos interessados, sugiro:

a) ler a matéria de Rafael Seabra (http://queroficarrico.com/blog/2008/10/14/credito-facil-ajuda-ou-atrapalha/), publicada no blog Quero Ficar Rico.

b) seguir as dicas do Ministério Público de Santa Catarina sobre utilização do crédito consignado (ver http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/noticias/detalhe.asp?campo=7900&secao_id=367)

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