3 de jan. de 2010

A margem consignável e os direitos do consumidor


Não é raro (aliás, a frequência até assusta) vermos pessoas revoltadas com o fato de a soma das parcelas mensais de seus empréstimos consignados superar a margem consignável, não hesitando em atribuir aos bancos a culpa por esses descontos “abusivos”. Dizem que é preciso impedir a ação dos bancos que, sequiosos por lucro, avançam sem dó nem piedade sobre o contracheque dos infelizes servidores. Em um site de orientação ao consumidor, li que “... em alguns casos o consumidor é vítima de abusos e acaba tendo todo ou quase todo seu salário sequestrado pela instituição financeira”. Abusos? Sequestro? Isso seria caso de polícia! Eu fiquei até imaginando a notícia no jornal:

Da Sucursal em Brasília. A Diretoria da Polícia Civil acaba de anunciar que, na semana passada, um bancário disfarçado de entregador de pizzas adentrou o setor de folha de pagamento de um órgão público e, aproveitando-se da distração dos funcionários, sequestrou o salário de um pobre servidor. No dia seguinte ao ocorrido, familiares do dono do salário receberam um telefonema exigindo um polpudo resgate, além de terem sido orientados no sentido de que não chamassem a polícia, sob pena de retirarem do refém alguma verba lançada a crédito. Após intensas e infrutíferas negociações em busca de uma solução não-violenta, o titular das verbas remuneratórias decidiu consultar um advogado, que imediatamente ingressou na justiça com uma ação de anulação de contrato, cumulada com perdas e danos, contra o famigerado banco. O acontecimento causou forte comoção na população da cidade, que promoveu, com apoio da OAB – Organização dos Averbadores do Brasil e do MSM – Movimento dos Sem Margem, uma manifestação à porta do fórum, gritando palavras de ordem contra a exploração do povo pelo capital.

Voltando ao mundo real, a coisa funciona assim: o funcionário precisa de dinheiro do crédito consignado. Se não tiver margem consignável, nenhum banco empresta. A solução é conversar com o pessoal da folha de pagamento, que pode dar um jeitinho na margem consignável. Algumas vezes, um pastinha faz o papel de ponte entre o servidor e o setor de folha de pagamento. É sabido que uma cervejinha muitas vezes pode operar milagres. Permito-me transcrever trechos de matéria publicada no portal G1:

“O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, que defende o ex-diretor de Recursos Humanos do Senado, João Carlos Zoghbi, no inquérito que investiga sua participação na autorização de empréstimos irregulares a servidores da Casa, admitiu que seu cliente autorizou algumas operações de empréstimo consignado acima do valor permitido legalmente. [...] Segundo o advogado, ampliar a margem de 30% de comprometimento da folha de pagamento dos funcionários com empréstimos consignados era um fato corriqueiro e o Senado inteiro sabia da prática. “A questão da margem é uma questão legal, corriqueira, são várias pessoas que têm a autorização de fazer isso. O Senado inteiro sabia que isso era feito dessa forma, nunca houve sequer um questionamento por parte de ninguém”.

Ou seja, na interpretação do advogado (um tremendo cara-de-pau), a farra da margem era pública e notória e ninguém reclamava. É nessas horas que eu gostaria de ver o presidente da OAB (a dos advogados, não a fictícia organização de averbadores acima citada) protestar diante de tamanha barbaridade.

De posse da declaração de margem consignável assinada pelo pessoal camarada do setor de folha de pagamento, a proposta é submetida ao banco e o dinheiro é liberado ao servidor. Quando recebe o contracheque seguinte, a criatura se dá conta que vai passar os próximos 36 a 60 meses com um salário líquido de dar pena até em carrasco. Entra em ação o jus esperniandi: a culpa é do banco! E tem início mais uma aventura jurídica. Haja paciência!

A farra da margem consignável não livra a cara nem dos órgãos públicos em que o controle da margem consignável dos órgãos públicos é feito por sistemas informatizados. Esses sistemas (excelentes, por sinal), são adquiridos sem investimento público, pois sua aquisição se dá com recursos oriundos dos próprios consignatários, por meio de acordos de cooperação técnica ou instrumentos semelhantes. A manutenção é paga com a famosa tarifa mensal de averbação. Foi assim, é assim e será assim. Ou seja: só não tem sistema informatizado quem não quer. Nos sistemas mais evoluídos, a averbação da parcela mensal somente pode ser efetuada pelo banco na hipótese de disponibilidade de margem consignável e, ainda assim, mediante o uso da assinatura eletrônica do servidor (senha individual).

Qual a razão, então, para que mesmo quando sistemas informatizados fazem o controle da margem eventualmente ocorra um estouro? Uma hipótese é a supressão de alguma vantagem no contracheque do servidor: gratificação por exercício de determinada atividade, por exemplo. Nesse caso, qual a culpa do banco que concedeu o empréstimo? Outra hipótese é que máquinas são controladas por pessoas, e aí entra em cena mais uma vez a miraculosa cervejinha. Nesses casos, o que os bancos têm a ver com isso?

É verdade que alguns bancos cobram juros bastante altos se considerarmos o risco do consignado. Também é verdade que muitos bancos ainda teimam em embromar os clientes que solicitam a liquidação antecipada de seus empréstimos. Por igual, sabemos que muitos bancos (ou quase todos) não entregam ao cliente cópia do contrato. Nem o Banco do Vaticano é santo. Mas não se pode jogar sobre os bancos a culpa pela pandemia de gripe suína, pelo diâmetro da cintura do Ronaldo Fenômeno ou por eventual redução de margem consignável do cliente posteriormente à concessão do empréstimo. Em países civilizados, a coisa funciona assim: o banco empresta o dinheiro e o cliente paga na forma combinada. A cultura do calote só serve para aumentar o risco dos empréstimos e, consequentemente, as taxas de juros.

Por isso, se vamos brigar pelos direitos do consumidor no mercado de crédito consignado, está mais do que na hora colocar a cabeça no lugar e exigir que as leis e regulamentos sejam realmente cumpridos. Isso vale para bancos, clientes, órgãos empregadores e correspondentes bancários. Basta de impunidade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário