11 de jan. de 2010

HISTÓRIA: Cap. 8 - A questão da vigência da Lei nº 1.046/50


Vira e mexe, aparece alguém defendendo a tese de que a Lei nº 1.046/50 encontra-se em plena vigência. Afinal, ao se consultar os sites sobre legislação, principalmente os da Presidência da República, do Ministério do Planejamento, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, nenhum deles aponta a norma como tendo sido revogada.

A se tomar isso como verdade, imagino que teríamos hoje uma enxurrada de processos junto aos tribunais do país, todos pleiteando a redução dos juros estabelecidos nos contratos de empréstimos em consignação. Afinal, a citada lei prevê que os juros dos empréstimos não podem ultrapassar a 12% ao ano (art. 7º), o que corresponde a 0,95% ao mês. E também não seriam poucas as causas em que seus patronos pugnassem até mesmo pelo cancelamento puro e simples do desconto referente aos empréstimos, sob a alegação de que a instituição financeira não se inclui dentre as consignatárias previstas no art. 5º da lei, que só permitiria descontos em favor da Caixa Econômica e Banco do Brasil. Mas se é assim, por que não vemos um batalhão de advogados à frente dessas causas? A meu ver, isso pode ser explicado pelo fato de que, no fundo, nossos causídicos têm certeza de que a causa constitui uma aventura jurídica.

Se checarmos os fatos, veremos que essa lei sofreu um acidente durante uma cirurgia plástica em 1981, tendo ficado em coma até 1990, quando veio a falecer. A causa? Falência de múltiplos artigos. O drama começou em 4 de outubro de 1977, com a edição da Lei 6.445, dispondo sobre consignações em folha de pagamento de servidores civis, ativos e inativos, da Administração Federal direta e das autarquias federais. Seu texto abrangente em nada alterou a Lei 1046/50, que permaneceu vigente. Mas isso era só o prenúncio da “tragédia”.

Ao editar o Decreto n° 86.600, de 17 de novembro de 1981, que objetivava apenas regulamentar a Lei 6.445, o Poder Executivo alterou a própria essência da lei. Exemplos não faltam. Dentre as consignações facultativas elencadas, o decreto manteve as amortizações e juros de dívidas pessoais, mas incluiu as contribuições para associações de classe e descontos para cooperativas (no sentido amplo) de servidores federais, antes vedada. No rol das entidades consignatárias, foram mantidas as entidades públicas (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e as fundações instituídas por lei federal) e as cooperativas de consumo, incluindo-se, no entanto, as cooperativas de crédito, formada por servidores federais; as entidades de classe representativas de servidores federais; e as entidades fechadas de previdência privada ou abertas, sem fins lucrativos, que operavam com planos de pecúlios ou renda mensal. Sem ter o cuidado de vincular o tipo de consignação ao consignatário, o decreto permitiu que as rubricas de desconto concedidas às associações de classe – destinadas, em princípio, para o recolhimento das contribuições mensais – fossem utilizadas para abrigar empréstimos. Rompia-se, desse modo, o arcabouço de proteção estabelecido pela Lei n° 1.046, compreendido pela mensagem de veto do Presidente Dutra, restaurando-se o mercado de intermediação praticado pelas associações de servidores.

Dito isso, poder-se-ia concluir que o art. 5º da Lei 6.445/77 teria revogado a Lei 1.046/50, o que definitivamente não é o caso. Com efeito, a Lei 6.445/77 não criava uma nova disciplina em torno das consignações em folha de pagamento dos funcionários públicos, mas apenas se limitava a classificar as consignações em obrigatórias e facultativas. Em nada era incompatível com a Lei 1.046/50. O que não se entendia era o fato de a norma regulamentadora (o Decreto 86.600/81) incluir descontos e consignatários não previstos em lei vigente, contrariando disposições expressas da Lei 1.046/50 (arts. 2º e 5º). Afinal, é sabido que um decreto não tem o condão de alterar uma lei.

O fato é que ninguém chiou (pela óbvia conveniência das alterações ou quiçá pelo fato de o general-presidente de plantão ser o Figueiredo, que sempre ameaçava “recrudescer” ante qualquer desafio à sua autoridade). Mas então surge a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que estatuiu:

Art. 45. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento. Parágrafo único. Mediante autorização do servidor, poderá haver consignação em folha de pagamento a favor de terceiros, a critério da administração e com reposição de custos, na forma definida em regulamento”.

Observe-se bem: o parágrafo único previa a possibilidade de haver consignação em folha de pagamento, na forma que viesse a ser definida em regulamento. Em outras palavras, as regras anteriores sobre consignação perdiam a eficácia, cabendo a regulamento futuro estabelecer a nova disciplina sobre o assunto.

Trazendo mais luz ao assunto, o texto da nova lei assim dispôs:

Art. 253. Ficam revogadas a Lei n° 1.711, de 28 de outubro de 1952, e respectiva legislação complementar, bem como as demais disposições em contrário”.

Como a Lei 1.711/52 disciplinava sobre o vencimento e remuneração dos funcionários, é óbvio que as disposições legais vigentes sobre os descontos lhe eram complementares, no que se incluía a Lei 1.046/50. Nessa linha de raciocínio foi o acórdão de 05/11/2003, da Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no julgamento da AMS 2000.02.01.065103-9, que sustentou que “a Lei nº 1046/50 restou revogada pelo art. 253 da Lei 8112/90, que revogou a Lei nº 1.711/52, sua legislação complementar e as disposições em contrário. Em seu art. 45 dispõe sobre o desconto em folha, sendo, pois, inocorrente a incidência do princípio da especialidade, dada a regulação integral da matéria. Ademais, o art. 157 da Lei 1711/52 dispunha que “o vencimento, a remuneração e o provento não sofrerão descontos além dos previstos em lei”.

Esse entendimento foi ratificado por unanimidade pela Quinta Turma do STJ, no RE 688.286/RJ. No voto do relator (Ministro José Arnaldo da Fonseca), lê-se que “... a Lei nº 8.112/90 passou a disciplinar o regime administrativo dos servidores públicos da União, suas Autarquias e Fundações Públicas. Em seu artigo 45 traçou o princípio reitor do regime consignatório, prevendo, expressamente, seu regramento pormenorizado por meio de regulamento próprio. ... Exsurge relevante, no ponto, que, após a edição da Lei nº 8.112/90, encontram-se revogadas, no âmbito das entidades e dos servidores sujeitos ao seu regime, as Leis nºs 1.046/50 e 2.339/54.” Parece-me, assim, que a decisão do STJ encerrou de forma cristalina a discussão sobre a vigência da Lei nº 1.046/50.


11 comentários:

  1. Anônimo11/1/10

    Não concordo com a tua explanação:
    a)acórdão não revoga lei;
    b) voto de relator não revoga lei;
    c) alguns artigos da lei 1.046/50 foram, realmente, revogados por leis posteriores. Mas nem todos...Por exemplo: o artigo que limita os juros a 12% a.a. foi revogado; o artigo 16 da lei 1.046/50 não foi revogado.
    d) tua conclusão foi um pouco apressada...

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  2. Prezado Anônimo,

    De fato, nem acórdão nem votos revogam leis. Aliás, eu nunca disse isso. O que eu citei foi que o STJ acolheu o entendimento do TRF-2 de que a Lei 1.046/50 foi revogada pela Lei 8.112/90. Apenas isso. Veja, a propósito, o art. 105 da Constituição:

    “Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
    ...
    III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
    a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;”

    É cristalina, pois, a competência do STJ para tanto. No mais, o Direito não é uma ciência exata, o que nos proporciona espaço para discussões.

    Quanto ao texto do art. 16 da Lei 1046/50 (ocorrido o falecimento do consignante, ficará extinta a dívida do empréstimo feito mediante simples garantia da consignação em folha), observe que o art. 1997 do Código Civil mostra caminho diverso (a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube). Mas isso também é assunto a ser decidido pelos tribunais.

    No mais, entendo que muita gente acredita que o crédito consignado seja um crédito fácil de pegar e de não pagar. Se queremos crédito barato, temos que oferecer segurança de retorno a quem empresta. O calote não serve para ninguém.

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  3. Anônimo19/9/11

    Perfeito, apenas chamo a atenção para que o acórdão do STJ é claro: está revogada apenas para os servidores sujeitos à lei 8.112.
    Para os demais servidores, a lei 1.046/50 parece estar vigente.

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  4. Roberto20/9/11

    De pleno acordo! Essa me parece também a melhor conclusão, haja vista mesmo a manifestação do ministro-relator no STJ, de que "...após a edição da Lei nº 8.112/90, encontram-se revogadas, no âmbito das entidades e dos servidores sujeitos ao seu regime, as Leis nºs 1.046/50 e 2.339/54".

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  5. Anônimo16/5/12

    Caro Roberto!
    Não sou advogado e nem conheço tais leis profundamente, por isso preciso de sua opinião.
    O parágrafo segundo, do Art. 15, da lei 1.046/50 diz que "...o consignante ficará isento dos juros relativos às prestações posteriores ao mês em que se realizar a liquidação."
    Hoje em dia esse parágrafo pode ser utilizado como argumento para quitação antecipada de empréstimo? Pois, uma vez que eu queira quitar antecipadamente o empréstimo, eu não deveria pagar por aquilo que não utilizei, ou seja, apenas deveria pagar pelo tempo da prestação do serviço, que é o tempo que eu utilizei o empréstimo.
    Mas, o que é argumentado hoje é o art. 52, § 2º , do Código de Defesa do Consumidor, que apenas diz que o consignante tem direito a "liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante a redução proporcional dos juros".
    Com isso, subentende-se que eu devo pagar pelos juros das parcelas que ainda estão por vencer, mas que eu não deveria pagar porque já quitei antecipadamente.
    Sou aposentado por tempo de contribuição e realizei um empréstimo consignado em folha.

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    1. O fato é que você somente deve pagar juros referentes ao tempo em que permaneceu devedor do empréstimo. Eu entendo que o art. 15 da Lei 1046 e o art. 52, § 2º, do CDC dizem a mesma coisa, mas de formas diferentes.

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  6. Anônimo4/7/12

    Caro Roberto poderia comentar o paragrafo único do art. 9º da Lei 1046/50. Por esse artigo poderia haver prorrogação infinita do contrato. Tal dispositivo foi recepcionado pela CF/88? O amigo tem conhecimento de algum julgado envolvendo o referido dispositivo?

    Desde já, grato.

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    1. É o que parece, ou seja, a prorrogação "infinita" pode ser uma possibilidade. Veja o julgado abaixo, do TRF-1:

      Numeração única: 13517-61.2010.4.01.3200
      13517-61.2010.4.01.3200 AÇÃO ORDINÁRIA / OUTRAS



      AUTOR
      :
      FRANCISCA LEUZIMAR MAGALHAES DE SOUZA

      ADVOGADO
      :
      AM00004334 - BARTOLOMEU FERREIRA DE AZEVEDO JUNIOR

      ADVOGADO
      :
      AM00007436 - PATRICIA DA COSTA CHAGAS

      REU
      :
      CAIXA ECONOMICA FEDERAL - CEF

      ADVOGADO
      :
      AM00005297 - ANDRESA DANTAS MAQUINE

      ADVOGADO
      :
      AM00004189 - KATIA REGINA SOUZA NASCIMENTO

      O Exmo. Sr. Juiz exarou :
      [...] Portanto, DEFIRO O PEDIDO FORMULADO NA INICIAL, RATIFICANDO A LIMINAR CONCEDIDA, para determinar que a requerida se abstenha de efetuar desconto em folha da requerente, de valores que ultrapassem o limite estipulado pelo parágrafo único do artigo 9º e o artigo 21, ambos da Lei nº 1.046, de 2 de janeiro de 1950. Ressalto que, querendo, poderá a requerida propor à autora renegociação das dívidas, com vistas a adequar os valores dos empréstimos ao limite consignatório ora estipulado, podendo, para tanto, aumentar o período de pagamento dos referidos empréstimos. Intimese o Presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas com vistas a que tome ciência deste decisum. Condeno a parte ré ao pagamento das custas e arbitro os honorários advocatícios a serem pagos pela requerida no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), em apreciação equitativa (art. 20§ 4º do CPC).

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  7. Caro Roberto, Sou funcionário da SEC - BA e fui Requisitado pelo TRT 5ª Região, no qual fiquei 6 anos, neste período tomei empréstimo consignado, e sem qualquer motivo apresentado, fui devolvido, ao órgão de origem, com um salário anterior que me deixou sem a menor condição de pagar o empréstimo, neste caso, há alguma jurisprudência que me permita utilizar, para que o órgão que me devolveu assuma o ônus, pela minha inadimplência?

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    1. Dionísio, veja o que dispõe o art. 9º da Lei 1046/50:

      "As entidades a que pertençam, ou sirvam os consignantes, não responderão pela consignação, nos casos de perda do emprêgo ou de insuficiência do vencimento, remuneração, salário, provento, subsídio, pensão, montepio, ou meio sôldo.
      Parágrafo único. No caso de insuficiência será suspenso o desconto e dilatado o prazo pelo tempo necessário para pagamento das consignações em débito e dos juros da mora".

      Veja se é possível enquadrar seu caso nas disposições do parágrafo único.

      Abraços.

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  8. E em caso que a própria entidade propiciou a situação, por devolução sem uma justa causa. Ha precedentes que pode ser utilizado, como instrumento jurisprudente.

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