8 de dez. de 2009

HISTÓRIA: Cap. 2 - A criação do crédito consignado


Durante o período da escravidão, o mercado de consumo era praticamente restrito às compras efetuadas pelos fazendeiros para si e para seus escravos e agregados. Com pouca circulação de moeda metálica, as emissões eram feitas de forma irregular, de acordo com a necessidade e sem obediência a critérios pré-definidos. Abolida a escravatura, o mercado de consumo ampliou-se com o surgimento de fontes de trabalho livre e assalariado. No âmbito do funcionalismo, a herança deixada pelo império não era das mais auspiciosas. Ruy Barbosa, na Exposição de Motivos do Decreto nº 172, de 21 de janeiro de 1890, dirigida ao Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca, já havia dito que “o systema das passadas administrações consistia em encher as repartições de pessoal, nem sempre idoneo, mas sempre excessivo e conseguintemente mal remunerado” (mais de 100 anos se passaram e as coisas pouco mudaram neste país...).


A par de reduzir o quadro de pessoal, fazia-se conveniente a adoção de outras medidas de estímulo aos servidores que permanecessem a serviço do governo: a primeira foi a de aumentar seus vencimentos, o que ocorreu em janeiro de 1890. Todavia, esse reajuste dos vencimentos do funcionalismo não surtiu o efeito desejado, em razão do aumento da inflação, verificado pelo excesso de papel-moeda em circulação.


Uma das formas encontradas pelo governo para satisfazer essa crescente demanda de recursos para o consumo, pelo menos junto ao funcionalismo público, foi através da oferta de crédito. Com esse objetivo, o governo concedeu autorização ao funcionário público Antonio José de Abreu para a constituição do Banco dos Funcionários Públicos, na cidade do Rio de Janeiro. A edição do Decreto nº 771, de 20 de setembro de 1890, constituiu-se na primeira referência normativa à utilização do sistema de desconto em folha de pagamento como modalidade de amortização de empréstimos. A criação de um banco para os funcionários públicos foi justificada pela necessidade de “beneficiar esta numerosa classe, facilitando-lhe empréstimos de dinheiro e a acquisição de prédios para si ou suas famílias e contractos de seguros de vida.” De acordo com o dispositivo legal, “uma tal instituição liberta os funccionarios de abusivas extorsões a que se sujeitam, obrigados os circumstancias imprevistas e inevitaveis” (esse mesmo argumento foi utilizado em 2003 pelo Governo Lula).


Preocupado com os indesejáveis efeitos de um alto grau de endividamento por parte dos servidores, estabeleceu-se que “taes empréstimos, a longo prazo e juro módico”, absorvessem “apenas uma pequena parte do vencimento mensal dos funccionarios, tirada a quota de todas as despezas occasionadas pelos empréstimos.” Ademais, “a taxa do juro dos emprestimos do Banco dos Funccionarios Publicos nunca será maior de 1% ao mez, calculado sempre sobre o capital realmente devido, e a da amortização não será inferior a 3%, salvo nos casos de emprestimo para compra de prédio”.


Característica relevante inserida no dispositivo legal foi a concessão, ao Banco dos Funcionários Públicos, de exclusividade nas operações de empréstimos com os servidores, explicitada em artigo do decreto: “Art. 9º Emquanto durarem as operações do Banco dos Funccionarios Publicos, organizado pelo funccionario Antonio José de Abreu, na fórma deste Decreto e dos estatutos que forem approvados pelo Governo, a nenhum outro particular ou funccionario publico serão concedidos iguaes favores”. A reserva de mercado fora estabelecida no âmbito da iniciativa privada, nada obstando ao Governo conceder igual prerrogativa a instituições públicas. O privilégio de exclusividade, no entanto, podia ser objeto de negociação pelo próprio banco, desde que obtivesse aprovação governamental para tanto. Pouco mais de seis meses após a outorga da autorização para constituição e funcionamento, o governo aprovou os estatutos do Banco dos Funcionários Públicos, por meio do Decreto nº 105, de 4 de abril de 1891, com o que foi autorizado o seu funcionamento. Juntamente com a Sociedade Anônima Cooperativa dos Funcionários Públicos, autorizada a se organizar pelo Decreto nº 1.070, de 22 de novembro de 1890, o Banco dos Funcionários Públicos foi pioneiro no atendimento às necessidades do servidor público, em seus diversos aspectos: financiamento de casa própria, empréstimos pessoais sem destinação específica, concessão de fiança locatícia, financiamento de bens de consumo. Diferentemente da cooperativa, que admitia negócios com o público em geral, as operações do banco eram restritas aos funcionários públicos, assim considerados “... os empregados ou pensionistas, civis ou militares, homens ou mulheres, activos ou inactivos, que perceberem dos cofres publicos geraes vencimentos de qualquer natureza”.


De acordo com suas disposições estatutárias, o banco cumpriria sua missão precípua de auxiliar os funcionários públicos:


§ 1º. Facilitando-lhes a compra de predios, a prazo determinado ou não, e mediante ou sem seguro de vida.

§ 2º. Fazendo-lhes adeantamentos até á importancia de doze mezes de vencimentos, com amortização obrigatoria ou não, e mediante ou sem fiança, seguro de vida ou garantia especial.

§ 3º. Dando-lhes cartas de fiança para aluguel de casa.

§ 4º. Proporcionando-lhes a compra de generos de primeira necessidade por preços inferiores aos do mercado”.


As operações de empréstimo para aquisição de imóveis com garantia hipotecária podiam ser efetuadas com ou sem seguro de vida. No primeiro caso, o limite máximo do empréstimo era de 20:000$ (vinte contos de réis); no segundo, de 15:000$ (quinze contos de réis). O seguro contra incêndio e os tributos prediais eram cobrados mensalmente, junto com as parcelas de amortização de principal (limitadas a 180), juros de 8% ao ano e comissão administrativa de 2% ao ano. Os empréstimos para as demais finalidades tinham a fiança como garantia obrigatória, e o valor máximo da transação era estabelecido em razão do salário do proponente. Nos créditos vinculados a seguro de vida, tinha-se como teto um montante equivalente a doze meses de salário, com cobrança mensal de juros de 12% ao ano; o valor de cada amortização mensal ficava a critério do mutuário. Nas operações sem seguro de vida, o valor máximo do negócio era limitado a seis vezes os proventos mensais, com juros de 12% ao ano, amortizados em parcelas de valor nunca inferior a 3% do montante emprestado.


A respeito das garantias, estabeleceu-se uma singular metodologia: a fiança solidária. Por meio desse mecanismo, os funcionários poderiam constituir fiança mútua, formando grupos de no mínimo três, os quais seriam solidariamente responsáveis entre si pelos débitos contraídos com o banco pelos demais integrantes do grupo. Essa forma de garantia de empréstimos foi adotada no modelo de microcrédito desenvolvido pelo Grameen Bank de Bangladesh, vencedor do Nobel da Paz de 2006, e festejada por todo o mundo como inovação metodológica da instituição criada por Muhammad Yunus. No Brasil, ressurgiu com a edição da Resolução nº 3.310, de 31 de agosto de 2005, do Conselho Monetário Nacional, que admitiu o aval solidário em grupo com, no mínimo, três participantes, como garantia nas operações de microcrédito.


Além dessas condições de juros, limites e garantias estabelecidos para as operações, os estatutos do banco dispunham ao vincular as operações envolvendo funcionários públicos à prévia outorga, por parte destes, de “...procuração em causa propria, com todas as prerogativas juridicas e nos termos do decreto n. 771 de 20 de setembro de 1890.” De posse da procuração outorgada pelo funcionário público, o processo adotado pelo banco para recebimento das parcelas do empréstimo se mostrava diferente daquele praticado nos dias atuais.


Na moderna sistemática de operações de crédito mediante consignação em folha, o devedor autoriza ao seu empregador que desconte de seus proventos e transfira ao credor, e nada mais, o valor correspondente à parcela de amortização do empréstimo que foi pactuada. Nas operações do Banco dos Funcionários Públicos, contudo, a instituição estava legalmente autorizada a se apropriar das parcelas de amortização que lhe eram devidas mediante o uso das “... procurações passadas pelos mutuarios ao Banco dos Funccionarios Publicos ... reputadas instrumentos de uma convenção particular, synallagmatica, em beneficio de ambas as partes contractantes, verdadeiras procurações em causa propria com todas as suas prerogativas jurídicas”. Assim, “dos vencimentos de cada funccionario, cobrados em virtude de procuração dada ao banco, deduzirá este as quotas que lhe forem devidas, segundo os estatutos, e o restante será pelo banco entregue ou creditado ao funccionario, em conta corrente”. Em resumo: com a procuração, o banco sacava o salário integral do funcionário, retirava a parte que lhe cabia e entregava o saldo remanescente ao devedor. Muitos banqueiros cortariam um braço por um negócio desses nos dias atuais.


Essa prática foi descrita pelo escritor Aluísio Azevedo, ao narrar o ambiente da casa comercial de João Romão, protagonista de “O Cortiço”, livro publicado em 1890:


“A sua casa tinha agora um pessoal complicado de primeiros, segundos e terceiros caixeiros, além do guarda-livros, do comprador, do despachante e do caixa; do seu escritório saiam correspondências em várias línguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contratos comerciais, transações em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negociações de empresas e privilégios obtidos do governo; e realizavam-se vendas e compras de papéis; e concluíam-se empréstimos de juros fortes sobre hipotecas de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas adulados e mercadores falidos; corretores de praça, zangões, cambistas; empregados públicos, que passavam procuração contra o seu ordenado; empresários de teatro e fundadores de jornais, em aparos de dinheiro; viúvas, que negociavam o seu montepio; estudantes, que iam receber a sua mesada; e capatazes de vários grupos de trabalhadores pagos pela casa; e, destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miúda do foro, sempre inquieta, farisqueira, a meter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da boca”.



Essa sistemática foi ligeiramente alterada em 1900, quando da aprovação dos novos estatutos do banco, que determinou que “... si qualquer circumstancia imprevista obstar a cobrança regular da consignação, mandar-se-ha apresentar na repartição competente a respectiva procuração para, entregue todo o vencimento do mutuario ao cobrador do banco, indemnizar-se este da quota consignada e entregar logo o excedente áquelle”.


Por derradeiro, o Decreto estipulava que ditas procurações poderiam “... produzir seus effeitos legaes, ainda mesmo no caso de fallecimento do constituinte”. Tratando de procuração em causa própria, já vigorava a regra hoje inscrita no art. 685 do Código Civil:


“Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis e imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais”.


Ainda em 1891, decorrido pouco mais de seis meses após o início de suas atividades, o Banco dos Funcionários Públicos transferiu ao Banco Auxiliar das Classes, estabelecido na cidade de Salvador, os direitos que lhe haviam sido outorgados pelo Decreto nº 771, a fim de que aquela instituição pudesse operar com os funcionários federais da Bahia (ver Decreto nº 640C, de 31 de outubro de 1891). Idênticas transferências de direitos ocorreram em 1895 (à Sociedade de Crédito Popular, de Belém, no Pará, conforme Decreto nº 2.017, de 29 de abril de 1895) e em 1902 (ao bacharel João Álvares Pereira de Lyra, de Pernambuco, pelo Decreto nº 4.396, de 29 de abril de 1902, sendo que a concessão foi cassada em 1915 pelo fato de o concessionário não ter recolhido, desde 1908, as quotas destinadas ao pagamento do fiscal do governo, daí porque o governo considerou que se achavam paralisadas as operações decorrentes da concessão outorgada).


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